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José Cid, 80 anos. “Sou o único cantor em Portugal que passou pela música a divertir-se. Olho as pessoas de frente, estou sempre a provocar”

4 fevereiro 2022 12:17

José Cid fotografado em 2021 para a BLITZ

Celebra esta sexta-feira 80 anos de vida. Em 2019, ano em que foi agraciado com um Grammy Latino por Excelência Musical, falávamos com um homem eternamente sem filtro que manda recados sem olhar a quem. “Comecei a perceber que era politicamente incorreto no dia em que vim com Mário Soares de avião de Paris para Lisboa, assinei 27 autógrafos e ele nenhum”. Uma entrevista torrencial. Parabéns, Cid!

4 fevereiro 2022 12:17

José Cid não (se) trava. Não pode parar, admite, sem qualquer problema. O palco dá-lhe energia e o futuro parece ser a coisa que realmente mais lhe interessa. Agraciado com um Grammy Latino que distingue a Excelência Musical – num ano em que Joan Baez ou Omara Portuondo receberam idêntica distinção – não hesita em explicar que a estatueta vai ter lugar ao lado de prémios que lhe foram atribuídos por instituições de bombeiros e distribui mimos e alfinetadas à esquerda e à direita, deixando claro que nem a idade lhe impõe qualquer espécie de filtro.

Com uma consciência aguçada da obra construída, conversa sobre um alargado leque de questões, do sample do Quarteto 111 usado por Jay-Z ao álbum “lisboeta” de Madonna, do hip-hop ao fado, do Festival da Canção ao Ministério da Cultura. E conta histórias, como a do dia em que, garante, se viu mais requisitado para autógrafos do que Mário Soares.

Quando lhe ligaram dos Grammys, achou que era brincadeira?
Não esperava isto. Não tenho uma grande multinacional atrás de mim, a proteger-me. E são as grandes multinacionais que controlam muita coisa, que tomam muitas decisões. Não controlam tudo, ainda há gente que sabe dizer que não. Tenho um pequeno selo que produz um álbum por ano. Sei que é um suicídio, mas é o que eu quero fazer – sempre fica depois para fundo de catálogo. É meu, já não é das multinacionais. E foi por isso que fiquei surpreendido, porque estou sozinho contra as grandes multinacionais que pressionam não só Miami como a opinião pública mundial. Acabei por perguntar: “a que propósito é que vocês me vêm aqui descobrir, escondido atrás de uma moita, de um pequeno selo chamado Acid Records?”. E eles responderam-me em castelhano: “nós encontrámos um álbum seu incrível chamado “Oda a Federico García Lorca”, de 1998”. Eu sou completamente vidrado em termos poéticos em Lorca, malgré Fernando Pessoa ou Teixeira de Pascoaes. Porque é muito telúrico, voltado a sul, com a vida cortada por Franco, fuzilado, morto. Ficou a meio da sua obra, mas chega porque já é genial. Esse disco correu muito bem em Espanha, teve críticas sublimes e fiz até as festas da cidade de Vigo na semana em que os Rolling Stones também lá estavam. Tive críticas incríveis, mas depois ficou tudo por aí. Os espanhóis não vão muito à bola, só quando joga o Ronaldo nas equipas deles. São rapazes espertos que põem Almaraz a 50 quilómetros da fronteira, detritos nucleares em Salamanca a céu aberto, boicotam o Tejo… A equipa do Grammy falou-me também num álbum jazzístico baseado em música popular portuguesa que eu fiz em 2000 e, claro, também conheciam o “10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte”. Primeiro suspeitei que era para os apanhados, mas depois percebi que era verdade e começámos a tratar de tudo.

Não era expectável que as altas instituições da cultura e da música em Portugal tivessem reagido a tal distinção?
Isso só aconteceria se eu mesmo fosse Ministro da Cultura e me coubesse apoiar outro colega. Houve alguns gestos de parabenização, mas nada mais do que isso. O senhor Primeiro Ministro teve uma conversa comigo, mais de meia hora, porque é uma pessoa muito simpática. O senhor Presidente da República parabenizou-me, mas estava sem tempo. O homem não tem tempo para nada, está sempre em qualquer lado, que não é parte nenhuma… Aquela música do António Variações, o ‘Estou Além’, era capaz de servir ao senhor Presidente da República. E depois houve um milhão de pessoas a dar-me os parabéns, porque ficaram contentes e são minhas amigas. Também deve ter havido algumas que se morderam todas e morreram envenenadas para o lado de lá…

Portugal já lhe deve uma condecoraçãozinha?
Não, porque eu sou muito antissistema. Defendo uma ideia política monárquica que não tem nada a ver com esta porcaria de alpinismo social do partido monárquico português. A minha ideia aproxima-se muito dos países do norte da Europa, que têm os sistemas mais próximos da perfeição que há no mundo, menos corruptos, mais culturais, com melhor nível de vida. Portanto, há muita coisa com que eu não concordo, como a justiça lenta portuguesa, que deixa as coisas entrarem na caducidade, por exemplo. Também defendo a ideia de que o lado cultural português é muito pouco protegido. Integrados na Europa – que é uma boa ideia – perdemos a nossa identidade política, económica, mas devíamos lutar pela identidade cultural para nos afirmarmos. Em Espanha – que é um sistema monárquico que eu até critico, em 2019 têm presos políticos – até o que é mau, musicalmente falando, eles protegem. Eles têm algumas coisas interessantes, no sul, na fusão que a música andaluz faz com o jazz, mas depois no geral o que fazem é inferior ao que se faz na música por cá, inferior poeticamente e em termos de estética de produção também. Conclusão: defendo a ideia de que temos de aproveitar a extraordinária diferenciação que a nossa música tem.

Se Marcelo Rebelo de Sousa lhe ligar para lhe dar uma medalha, recusa?
Talvez não. Gosto muito dele. Acho que daria um rei interessante. Não diria que não, mas também teria de saber o nível da condecoração que iria receber. Não iria receber uma condecoração qualquer… Isso daria às cadelas. Têm de perceber que eu ando há 50 anos em Portugal, de norte a sul, com um êxito incrível, com um apoio incrível, que é ainda melhor do que um Grammy. A forma como eu sou acarinhado pelo povo português é incrível, em grandes, médios ou pequenos concertos. E se calhar isto até devia vir no Guinness: não há ninguém com 77 anos a quem aconteça isto. A crítica portuguesa também ainda não percebeu isso. Também não estou muito interessado porque ainda sou jovem e ainda tenho muito para dizer. Sou muito aquariano, penso em termos de futuro.

Consegue imaginar-se, como aconteceu com Gilberto Gil no Brasil, a assumir uma pasta ministerial da cultura?
Completamente. Para começar, sou muito amigo do Gilberto Gil. Sou um rapazito que em 1969 ou 1970 descobriu o Gilberto Gil, o Caetano Veloso e a Maria Bethânia ainda pequenina, já exilados do Brasil. Encontrei-os no Estoril, quando iam a caminho de Inglaterra. “Vocês são os tropicalistas!”, disse-lhes eu. “Somos, cara, como você sabe?”. Eu tinha lido sobre eles e convidei-os a virem à nossa garagem fazerem uma jam. Eles vieram os três à garagem do Quarteto 1111 e foi engraçadíssimo, tocámos a noite inteira – o Veloso mais contido e o Gilberto mais expansivo. Ele deu-me mesmo dois temas, incluí um deles, o ‘Volkswagen Blue’, no meu primeiro álbum a solo. O tempo passou e eu achei que havia pessoas no Brasil que podiam ser ministros, como o Chico Buarque. E cá a mesma coisa, um Carlos do Carmo, porque não? São pessoas que sabem exatamente aquilo de que Portugal precisa em termos culturais.

Que medidas tomaria?
A diminuição do IVA no preço dos instrumentos musicais, que são caríssimos e por isso só ao alcance das elites. Dar uma volta ao ensino musical nas escolas, ensinar aos jovens como é que o José Afonso compunha de uma forma simplista, mas tão genial; como é que o Variações o fez também; como é que o Quarteto 1111, que é precursor desta coisa toda, consegue pegar em palavras em português e fazer uma verdadeira world music portuguesa. Devolver aos jovens a ideia de que neste retângulo temos um panorama tão rico, porque eles crescem logo a ouvir coisas que não têm a ver com a nossa raiz e até hostilizam o fado, o que é gravíssimo. Também acho que se devia mexer na parte da leitura, levar os jovens a lerem livros menos chatos. Não vou dizer nomes, mas dou alternativas: “A Voz dos Deuses”, de João Aguiar, é um livro que todos os jovens em Portugal deveriam ler porque revela o que era isto antes dos romanos aqui terem chegado e terem destruído tudo o quer por cá havia, em termos de cultos. Eu ainda hoje sou adorador do Endovélico, tal como acredito em Deus.

Que nomes não faltariam num José Cid Fest?
No meu discurso de aceitação do prémio Grammy mencionei dez nomes da minha geração e dez nomes da nova geração que mereceriam tanto como eu esta distinção. A minha geração é riquíssima, o pop/rock português da minha geração é riquíssimo. Heróis do Mar, Trovante, Sétima Legião, o Quarteto 1111, pois claro, o Carlos Tê e o Rui Veloso, o Jorge Palma ou o Fausto… tantos que, como eu, merecem uma consideração. E post-mortem, mesmo o Zeca e o Adriano mereceriam um galardão deste género. O prémio pode estar em minha casa, mas sinto-o com a participação de todos.

Onde está o seu Grammy?
Quem entra em minha casa, logo à direita, vê um piano digital, de quarto de cauda, onde tenho variadíssimos troféus. Alguns deles bem importantes, como o Prémio Pozal Domingues, uma obra em bronze do Cutileiro, lindíssima. Tenho um Prémio Carreira da SPA, o Globo de Ouro dado pela SIC no ano passado, e mais três ou quatro coisas importantes. O Grammy tem de caber ali ao lado, ao lado dos troféus que os bombeiros portugueses me foram dando ao longo de várias décadas porque eu tenho dado sempre apoio aos nossos soldados da paz.

Por causa do Grammy, o seu cachê vai subir?
Vai aumentar muito pouco. Este ano, em agosto, foi brutal… Cheguei a fazer cinco concertos de duas horas e meia, em cinco dias seguidos, quase sem tempo para dormir – nem faço soundcheck para conseguir fazer uma sesta. Não é violento para a voz, mas é violento fisicamente. Foram 20 concertos grandes, para muitos milhares de pessoas, só em agosto. Eu preciso de descansar, de dormir, por isso vou aumentar uns 3 ou 4 mil euros o meu cachê para concertos nas cidades. Nas vilas não posso, que as pessoas não têm dinheiro, e nas aldeias nem se fala. Vai ser um aumento pequeno, que eu já levo metade do cachê de alguns dos meus colegas.

Que colegas?
Não sei, não vou mencionar nomes. Mas posso dizer que falo menos ao vivo que o Abrunhosa, quase nem falo. Ele fala um bocadinho demais e toda a gente se queixa. Sei porque fui ver o espetáculo dele. Tem de cantar mais, porque ele é um homem talentosíssimo, está cheio de canções muito inspiradas, faz baladas pop de extraordinária qualidade. Também merecia uma nomeação para os Grammys.

Fotografado por Rita Carmo para a revista BLITZ em 2006

Fotografado por Rita Carmo para a revista BLITZ em 2006

“Comecei a perceber que era politicamente incorreto no dia em que vim com Mário Soares de avião de Paris para Lisboa e assinei 27 autógrafos e ele nenhum”

Não teria sido natural ver o seu nome no cartaz de um grande festival de verão?
É estranhíssimo. Quando em Portugal temos um álbum de rock nomeado entre os melhores do mundo e ninguém se lembra que há um concerto, extraordinário devo dizer, em torno desse álbum. Tive o Steve Hackett [ex-guitarrista dos Genesis] no ano passado, em Gouveia, no festival de rock sinfónico que lá se faz [Gouveia Art Rock], a ir aos camarins dar-me os parabéns. Tocámos o “10.000 Anos” na íntegra, o concerto correu muito bem, com o ecrã de leds a contar a história toda por trás do álbum, deu para três encores e tudo… De repente no camarim, estávamos nós muito emocionados porque correu tudo muito bem, e de repente o Steve Hackett bateu à porta, estava com o vocalista do projeto dele, Genesis Revisited [Nad Sylvan]: “nós nem sabíamos que em Portugal havia uma coisa destas… Isto é fabuloso”. E lá ficámos, com umas garrafinhas de Porto e champanhe, a conversar. Mas pronto, devo fazer um ato de justiça e lembrar que há oito anos fomos tocar a Vilar de Mouros. Pronto, foi um concerto à tarde, num dia de chuva… Devíamos ter fechado o festival Vilar de Mouros…

E o Rock in Rio?
Eles podiam pensar em tirar do Rock In Rio a Odete Sem Galo e meter o “10.000 Anos…”, que é um grande concerto. Ou um grande concerto do Rui Veloso… Eu chamo “Odete Sem Galo” à Ivete Sangalo porque ela não cabe ali… quer dizer, ela é muito mais Rio do que Rock. Não se percebe. Aquilo é bom para um casino, mas ali não tem nada a ver. Faria sentido uma boa permuta entre o rock brasileiro e o rock português. Os Secos e Molhados por exemplo, porque não poderiam voltar? Ou a Rita Lee? Nós caberíamos num cartaz desses, sim, se tivéssemos as pessoas em Portugal a gostar de si próprias. Mas isso só me faz rir por dentro.

Hoje fala-se muito em censura nas redes sociais, mas o José Cid viu mesmo discos serem retirado das lojas antes do 25 de Abril. Sentiu na pele o que era a censura real. Que pensa deste debate então?
As playlists ligam muito ao bilhete de identidade das pessoas, como se a música só pudesse ser feita por jovens. Tem de ser, claro, mas ignorar os menos jovens é uma grande falta de respeito. Foi o caso com os meus dois últimos álbuns, um deles altamente roqueiro, “Menino Prodígio”, que tem um rock bastante vermelho, de texto, nada cor-de-rosa, e que é um álbum a rever na música portuguesa; e depois o “Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid”, um álbum cheio de canções, com canções muito equilibradas, não há ali esterco musical. Ou seja, sim, as pessoas sentem-se marginalizadas. Quanto à política propriamente dita, o que eu acho é que o que tem futuro não é a política, é a arte, a poesia e a música.

Propõe portanto o “artisticamente correto” para substituir o politicamente correto?
Eu comecei a perceber que era politicamente incorreto no dia em que vim com Mário Soares de avião de Paris para Lisboa e assinei 27 autógrafos e ele nenhum. Isto significa que o que vai ficar não são os discursos políticos, que hoje são verdade e amanhã podem ser mentira, e vice-versa, mas são as grandes canções, o que é de raiz, o que é indelével na grande arte, na poesia. O que é nosso é que é durável.

Podemos ver nos seus próximos passos em termos discográficos um sinal do seu inconformismo?
No final de 2019 sairá um álbum meu de música popular [“Fados, Fandangos, Malhões …e uma Valsinha” foi editado no final de novembro], um disco que eu precisava de gravar, já andava há muito tempo a juntar temas. Sinto-me muito camaleónico, não quero estar preso a nada: canto fado como fadista amador, tenho um projeto de jazz amador que toca muito em pequenos sítios para ajudar os soldados da paz. Mas depois quero fazer um disco de música popular. E até se pode dizer que é musicalmente incorreto, porque é provocador. Parte da ideia de que ninguém está a fazer isto, nem os próprios fadistas, anda tudo a puxar para o lado das baladinhas pop que a rádio possa passar. A mim apeteceu-me fazer o contrário, um álbum de música popular, com boa poesia e três grandes convidados. Um dos temas chama-se ‘No Meu Fado Há Sempre um Blues’ e defende a ideia de que estas duas músicas têm uma ligação muito grande, entre o povo que trabalha nos rios, o que morre no mar e os que são escravos nas plantações de algodão, entre o Mississippi e o Tejo, que se encontram no meio do Atlântico. O fado e os blues têm tudo a ver: canta-se fado com swing, com alma, soul. Nunca se canta igual, porque fadista que canta tudo igual é papagaio, não é fadista. O que faz parte do fado, também faz parte dos blues e do jazz. Esse tema tem a Marisa Liz como convidada. Outro dueto é com o Ricardo Ribeiro: tinha acabado de musicar um poema que um amigo me enviou, ‘Por Calles y Vielas’, também uma ligação entre rios, entre o Tejo e o Guadalquivir; quando acabei de gravar a minha parte pensei logo no Ricardo Ribeiro para o tema e ele aceitou logo. E ainda há o ‘Que Bem Que Baila a Moura’, que tem a Matilde Cid, uma prima minha que canta muito bem o fado, e que é a moura nesta canção.

Mas há outro disco pronto a apontar noutra direção, certo?
Atenção, atenção amantes de rock sinfónico e do “10.000 Anos…”: está pronto, acabado, fechado, pronto a masterizar, o álbum “Vozes do Além” [que acabaria por ser lançado no final de 2021]. Não é um álbum conceptual, no sentido em que o “10.000 Anos…” era, mas todos os temas abordam a ideia da reencarnação. Para isso convidei 15 poetas, cada um com sua visão pessoal do que é isto da vida depois da morte. É um álbum com muita power ballad, mas muito roqueiro. Sairá em 2020, com grafismo todo baseado em óleos da minha mulher.

Esse álbum já é uma reflexão de alguém que sente estar na reta final da vida?
Estamos todos aí, na verdade. Mas pronto, é normal que as pessoas que já viveram mais tempo, como é o meu caso, estejam mais próximas da morte e nesse sentido, sim, sou eu a refletir sobre tudo isso. Mas quem esteja nesse ponto vai encontrar nesses poemas uma espécie de vingança, ou pelo menos uma tentativa de explicação sobre o abandono deste plano físico.

Há pouco mencionava a Marisa Liz e o Ricardo Ribeiro. Já obteve ‘nãos’ como resposta a convites seus?
(pausa) Já. Duas pessoas, mas não vou dizer quem foram. Seria um pouco agressivo.

Já recusou convites que lhe tenham sido dirigidos?
Não tenho recebido muitos convites… Houve um do Mário Mata, outro do Luís Represas, que aceitei…

Lena d’Água ou Rui Pregal da Cunha são exemplos de cantores de outra geração que foram chamados para colaborar com músicos de gerações mais recentes. Não lhe tem acontecido?
Sim, aconteceu com os Ganso, que estão aí com um álbum novo, com os Prana, os Capitão Fausto, que gravaram um tema chamado “Zécid”, que eu agradeci com outro chamado “A Banda do Capitão Fausto”. Também sinto uma grande ligação aos Azeitonas, mesmo não tendo havido ainda nenhuma gravação conjunta. Estão à espera de subir agora, a resolver a saída do Miguel Araújo, que é de peso. Ele tem um enorme talento, mas eles também têm.

José Cid em 2019 na sessão fotográfica realizada para esta entrevista

José Cid em 2019 na sessão fotográfica realizada para esta entrevista

“O Quarteto 1111 foi a banda da Europa continental mais rebelde, mais censurada, mais perseguida por sistemas, mais atirada para a frente, com mais imaginação… e isso nunca foi reconhecido”

Recuemos no tempo. O álbum do Quarteto 1111 foi recuperado numa reedição da Armoniz, mas continua a ser preciso olhar para este grupo, não?
Claro, é acintoso, de mau caráter e até em termos económicos me parece má ideia que a editora que detém o trabalho daquela que foi a melhor banda da Europa continental nada faça. O Quarteto 1111 foi a banda da Europa continental mais rebelde, mais censurada, mais perseguida por sistemas, mais atirada para a frente, com mais imaginação… e isso nunca foi reconhecido. E o Quarteto 1111 tem uma obra genial, uma obra verdadeiramente underground, nunca revelada, e eu suponho isso tenha a ver com o facto de, fartinhos de sermos ignorados por uma editora, termos ido bater à porta de outra que nos recebeu de braços abertos, a Orfeu do Arnaldo Trindade de quem ainda hoje somos muito amigos. A mesma Orfeu onde estava o Zeca, o Adriano. Essa mudança não foi perdoada, fomos metidos numas catacumbas e deixaram-nos para lá. E “A Lenda de El-Rei D. Sebastião” é apenas a ponta de um iceberg muito grande que está escondido e silenciado

Tem o cuidado de referir “Europa continental” para excluir os Beatles desse campeonato?
Os Beatles, os Stones, os King Crimson, o Donovan e tanta outra coisa…

Sentiu uma ponta de justiça quando recebeu o telefonema da SPA a dar conta do sample de ‘Todo o Mundo e Ninguém’?
Achei isso muito engraçado e fiquei na expectativa. Eu e o Tozé Brito, também autor. Foi exatamente essa a canção que resultou de eu ter obrigado o Tozé, que vinha dos Pop Five, a deixar o inglês. Disse-lhe: “tens aqui este poema de Gil Vicente, faz música para ele, que eu depois trato do refrão”. Acho que o Jay-Z nem lhe passou pela cabeça em cima do que é que estava a cantar. Foi uma coisa que lhe soou. É uma espécie de vírus ali no meio do “4:44” do Jay-Z a que eu e o Tozé achámos piada, mais piada até por causa dos direitos de autor que estamos a receber.

Não se deveria ter relançado o tema?
Lá está, teria sido uma boa ideia que a própria editora que detém a obra poderia ter tido. Ainda por cima eu estou vivo, o Tozé está vivo, o baterista do Quarteto 1111 está vivo, um dos guitarristas está vivo… Podíamos até ter regravado tudo certinho. Penso que isto resulta tudo de uma certa premeditação. Mas a obra está lá, não pode ser apagada.

Quantos zeros havia no cheque enviado pelo Jay-Z?
Vamos ver: 10 euros tem um zero, cem euros tem dois zeros, mil euros tem três zeros… digamos que já anda à volta dos quatro zeros. E isso é interessante, mas também gostaria que o Jay-Z percebesse o que estava a fazer, mas pronto, com a Beyoncé ao lado nem deve ter muito tempo para pensar.

Já recebeu de algum rapper português um pedido para autorizar um sample?
Não, nunca aconteceu. Os Ganso regravaram aquele que dizem que é primeiro tema de rap português, “Portuguese Boys”, que eu gravei há 30 anos. Penso que foi o Samuel Úria que disse que a primeira vez que ouviu hip-hop em português foi com esse tema.

Mas está a par dessa geração, de gente como Sam The Kid ou Capicua?
Adoro toda essa área, são muito criativos e poeticamente muito interessantes. Musicalmente (pausa)… eu ando por outras áreas. Ando mais pelos lados do funky jazz.

Aceitaria um convite de algum artista do rap nacional?
Porque não? Se acontecer, depois logo se vê…

Depois de Quarteto 1111 veio a aventura Green Windows, ainda com o Tozé ao seu lado. O José e o Tozé eram os nossos Lennon e McCartney?
Não, nós dávamo-nos muito melhor do que eles (risos). Continuamos a dar. De tal maneira que no meu último álbum temos um dueto que se chama ‘João Gilberto e Astor Piazzolla’. Baseia-se na ideia de que quando começámos a tocar juntos, em finais dos anos 60, eu ainda não tinha nenhum sintetizador porque ainda não havia coisa semelhante por cá. Por esse motivo usava um acordeão, e ele tocava viola. Daí o João Gilberto e o Piazzolla.

Tanto o José como o Tozé tiveram boa parte da carreira associados ao Festival da Canção. Acha que essa é uma ‘instituição’ bem recuperada, no presente?
Está a ser, na medida em que depois de alguns desastres notórios, lá conseguimos ter a vitória com o ‘Amar Pelos Dois’, do Salvador Sobral. Foi muito importante saber que em Portugal há um jovem que canta desta maneira. E que como ele há muitos outros. A ideia do Salvador Sobral e da sua irmã [conseguirem algo assim] certamente que levou muita gente lá fora a querer saber se havia algo igual por cá. Acho até que o Salvador foi muito pouco explorado no sentido de se aproveitar a oportunidade para ser lançado numa carreira mundial.

Madonna levou Gaspar Varela, um jovem guitarrista português de fado em digressão com ela para os Estados Unidos…
Eu ouvi o álbum dela e devo dizer que me surpreendeu. Estava à espera de mais um desastre, depois de ter ouvido o que ela fez ao ‘American Pie’, que mais parecia um ‘Apple Pie’. Ela não é uma cantora nata, é altamente limitada e não pode cantar sem máquinas a proteger a voz. Viu-se aliás na Eurovisão, em que desafinou muito. Há 30 cantoras em Portugal mais giras e mais jovens a cantar melhor do que ela, mas coitadas, umas nasceram na Trafaria, outras em Sacavém, outras em Cedofeita… Não têm a mesma hipótese. Portanto ela fez bem em levar a guitarra portuguesa, mesmo que isso não se note muito no álbum dela. O que se nota é um salto muito grande. Acho que ela se inspirou muito ao passar por Portugal: até no X, aquilo parece dos Xutos & Pontapés. (risos)

Viu o filme “Variações”?
Vi, muito interessante. Tenho tentado não perder estes filmes: vi o “Yesterday”, muito bom; vi o “Bohemian Rhapsody”, também incrível. Tento não perder nenhum deles. Este filme faz justiça ao António Variações, um compositor nato, com a sua própria forma de expressão. É um nome que vai ficar para sempre.

Consegue imaginar qual o melhor ator para vestir a sua pele no cinema?
Não sei, seria complicado, quem canta como eu? O Paulo de Carvalho fez escola, eu nem por isso… Mas pronto, o filme sobre a minha vida teria de ser forçosamente divertido, porque eu sou provavelmente o único cantor em Portugal que passou e passa pela música a divertir-se. Para mim o palco é uma felicidade. Estou sempre a divertir-me, a olhar as pessoas de frente, estou sempre a provocar. Os meus concertos são uma festa. E isso é uma coisa que ninguém me pode pagar com nome de rua ou estátua ou condecoração: o respeito, a simpatia que o povo me dá, de norte a sul, já ninguém me tira.

Publicado originalmente na revista E, do Expresso, de 30 de novembro de 2019